Visita à Quinta das Bageiras – Parte 2

Entrevista com Mário Sérgio Alves Nuno

1.
(w4p) Esperava quando pegou neste projecto (há 30 anos atrás) chegar onde chegou?
(MS) – Quase 30 anos… 29 na verdade. Não, não imaginava que fosse tão depressa. Sempre disse (no inicio) ao meu pai que passados 10 anos poderíamos começar a ganhar algum dinheiro, pois o processo do vinho é sempre muito moroso… Acho que a Quinta das Bágeiras ainda tem muito que fazer: Não é ainda, nem de longe nem de perto, um dos vinhos mais conhecidos em Portugal… E eu quero que seja. Por isso, ainda há muita coisa para fazer…

2.
(w4p) A Quinta das Bágeiras é uma empresa familiar: O Avô Fausto é uma referência. O Pai Abel ainda ajuda a cuidar das vinhas. O Mário Sérgio é o Chefe. A irmã é sócia. A esposa é a directora comercial. O filho, o futuro enólogo. Isto tudo, está correcto?
(MS) – Hehehe… É efectivamente uma exploração familiar, e eu fiz questão, desde início, de envolver toda a Família. A Germana não é a directora comercial, porque aqui não há cargos fixos. Na verdade, todos nós temos de fazer de tudo um pouco… O Frederico se ele quiser… naturalmente não posso negar que gostaria, que ele viesse a trabalhar na Quinta das Bágeiras. Ele tem formação em enologia. O enólogo da Quinta das Bágeiras é o Sr. Rui Moura Alves, e vai continuar a ser… Uma coisa não tem nada a ver com a outra… A formação do Frederico é importante para ele, e eventualmente para o crescimento da Quinta das Bágeiras, mas terá, tal como os outros, de fazer de tudo um pouco…

3.
(w4p) “Baga Forever”. Não põe a hipótese de apostar noutras castas? O que é que a Baga tem assim de tão especial? É só a identidade?
(MS) – A Baga é uma casta díficil (como toda a gente diz). E não, não é só a identidade. Ela tem características únicas. Eu costumo dizer que a diferença entre um vinho muito bom e um grande vinho é uma coisa muito pequenina: um vinho muito bom é aquele que nós bebemos agora e gostamos muito. Um grande vinho é o mesmo vinho, que, se o bebermos daqui a 20 anos, vamos continuar a gostar muito dele. E a casta Baga proporciona esses grandes vinhos, que muitas outras castas não proporcionam… É certo que pode-nos dar identidade. Se nós não tivérmos identidade não nos conseguiremos afirmar no Mundo. E se olhármos para os melhores, vejamos a Borgonha por exemplo, continua a ter só o Pinot Noir e o Chardonnay… A casta que mais identifica a Bairrada é a Baga. Sempre existiram várias outras castas misturadas… Mas serão sempre apenas complementares… Nunca serão, a meu ver, castas de referência…

4.
(w4p) A pergunta anterior vem na sequência daquilo que aconteceu há uns tempos atrás: para além dos vinhos Baga, surgiu um novo “tipo” de vinho tinto na Bairrada, “tipo Novo Mundo”, eventualmente com Touriga Nacional, mas sobretudo com castas francesas: Merlot, Cabernet… Portanto, nunca irá apostar nisso?
(MS) – Não, não! Nem acho que faça sentido sequer. Da mesma forma que também não acho que faça sentido que exista na Bairrada uma coisa que se chama “Vinho Regional Atlântico”. Para mim, o vinho produzido na Bairrada é Bairrada! O resto é um subterfúgio comercial que nunca nos irá levar a lado nenhum. O que nos poderá levar a algum lado, só tem um nome: Bairrada. Poderá ser mais difícil. Bem sei que não estamos em França. Estamos em Portugal. O próprio país é menos conhecido no mundo vínico. Mas o que nos dará a identidade é o chapéu comum, é a marca Bairrada. Essa marca terá é de ser forte. Se essa marca for forte, todos os produtores vão beneficiar com isso.

5.
(w4p) Brancos. Avô Fausto/Garrafeira/Pai Abel. Qual a verdadeira diferença entre eles? Confesso que eu, sendo um apreciador dos seus brancos, não sei se em prova cega os saberia distinguir…
(MS) – Conseguia sim. Se de facto a Baga é a casta que melhor pode identificar a Bairrada, por outro lado, eu sou da opinião que a Bairrada é a melhor zona do País, e uma das melhores do mundo, para fazer vinhos brancos. Por duas razões muito simples: pela proximidade ao mar, e pelos terrenos argilo-calcários. Continuo a achar que os grandes brancos serão sempre feitos em terrenos argilo-calcários e não em terrenos arenosos… O Avô Fausto fazemos só com uma casta: Maria Gomes, e por isso é mais fácilmente identificável. Começámos por fazer em solo franco-arenoso, depois 60% arenoso e o resto argilo-calcário, e agora estamos já nos 60% argilo-calcário e 40% arenoso, e se calhar (veremos a percepção do consumidor, pois ainda só temos 3 colheitas), penso que o futuro será ser 100% argilo-calcário. Acho que os grandes brancos da Bairrada são sempre feitos em argilo-calcário. O Avô Fausto é feito só com Maria Gomes não por acaso. E aqui contrario uma regra que existe na Bairrada: há muito enólogos que dizem que a Maria Gomes não tem longevidade, e eu discordo completamente. E discordo porquê? Ora, ela não terá longevidade se produzir 10 toneladas por hectare… Mas se nós reduzirmos a produção da Maria Gomes, e se não for sujeita a stress hidrico, e se fizermos um acompanhamento rigoroso (como fazemos na Baga), é claramente possível fazer um vinho com longevidade a partir desta casta. É a variedade que o meu avô mais gostava. Se calhar não pelo mesmo motivo do que eu, mas era a que ele mais gostava. Por isso, quando surgiu a ideia de fazer um branco com o nome do meu avô, não me passou pela cabeça usar outra casta que não fosse esta.
Em relação ao Garrafeira e ao Pai Abel poderei concordar um pouco consigo… Poderá ser mais difícil, ao ínicio, identificar o que é Pai Abel e o que é Garrafeira… Embora eu ache que o Pai Abel é um vinho, digamos, mais polido, mais “limpo”… enquanto o Garrafeira é mais “obra do acaso”… Portanto, acho que, com o tempo, consegue-se identificar bem qual é qual, apesar de ambos serem feitos com as mesmas castas: Maria Gomes e Bical. Além disso, o Pai Abel é feito com uvas provenientes de uma só vinha, e o solo dessa vinha tem uma quantidade de calcário enorme, e isso está sempre muito presente no vinho, o que também ajuda a identificá-lo.

6.
(w4p) Maria Gomes e Bical. Mas há uma casta que está a ficar na moda na Bairrada: Então e o Cerceal??
(MS) – Temos também plantado Cerceal. Até temos uma varietal de Cerceal, com uma produção pequena de cerca de 800-900 garrafas de 2016, que ainda não sei quando vou comercializar… Para mim é uma experiência. A Cerceal tinha um problema grave na Bairrada: Estava plantada no meio de vinhas velhas e apodrecia com muita facilidade. Hoje, já se consegue controlar isso melhor, mas havia outro problema: que era a oxidação muito prematura. Por isso, foi de certa forma, durante muito tempo, abandonada. Agora, acho que é uma casta que, tanto para vinhos brancos como para espumantes, tem uma riqueza ácida absolutamente extraordinária… Embora hoje, eu ache que estamos a exagerar, no valorizar a acidez… Eu vejo muita gente a valorizar a acidez nos espumantes, mas continuo a pensar que uma uva de Chardonnay na região de Champagne com 8 graus está madura, mas na Bairrada está verdíssima. Por isso, essa história de valorizar demasiado a acidez, também não faz sentido, pois o vinho não é só acidez… O balanço das 2 coisas é que é importante: alcool e acidez. E a Cerceal tem esse potencial enorme.

7.
(w4p) A vinha (branca) do Pai Abel é relativamente nova (15-16 anos)… Portanto, a do Garrafeira é mais velha!… É que as pessoas não têm esta noção!… E no tinto, também acontece isto?
(MS) – Sim, as uvas do garrafeira são mais velhas. E no tinto isso também acontece. A vinha do Pai Abel (branco e tinto) é vinha nova… A vinha do tinto tem 22-23 anos.
(w4p) Então porque é que o Pai Abel é muito mais caro?… As uvas são melhores?… O vinho é mais trabalhado?…
(MS) – Bom, é mais caro, mas a diferença também não é assim tanta!… No Pai Abel, tenho fermentação em barricas… tenho de facto muito mais trabalho no Pai Abel do que no Garrafeira… Mas também, porque no Pai Abel acabamos por reduzir substancialmente a produção. Numa vinha velha normalmente não temos que ter essa mão-de-obra, pois ela, por natureza, terá uma produção reduzida… Na vinha do Pai Abel temos de fazer essa intervenção!
E, o que eu quis provar também, ou desmistificar, foi o seguinte: Eu não arranco nenhuma da minha vinha velha por nada deste mundo! Pois toda ela é muito boa… Mas, só o facto de ser vinha velha, não quer dizer que vá dar origem a um grande vinho. Acho que em Portugal se está a endeusar muito as vinhas velhas, algumas sem razão absolutamente nenhuma. E eu acho que, a partir de uma vinha nova, desde que o sítio, ou como dizem os franceses o terroir (que é muito mais que apenas o solo…), seja excepcional, então poderemos ter um grande vinho. Poderá implicar uma maior intervenção na vinha, mas o que eu quis provar foi: é possível fazer um grande vinho a partir de uma vinha relativamente nova.

8.
(w4p) Como surgiu a ideia de comercializar o “Chumbado”? O primeiro chumbado foi o Pai Abel Branco 2011.
(MS) – Em primeiro lugar, o ano de 2011 será sempre um ano mítico. E depois porque achei que o Pai Abel 2011 branco era um grande vinho. E a ideia nasceu numa brincadeira, num jantar com amigos, em que levei propositamente o vinho para ter opiniões de terceiros… E toda a gente disse que era um grande vinho (em prova cega). Depois, eu disse que o vinho era meu, e que estava chumbado!… Todos se riram, e toda a gente “gozou” com o termo durante o jantar: chumbado para aqui, chumbado para ali… E nesse dia, já por volta da meia-noite, passei pelo escritório: Instituto de Propriedade Industrial: e registei a marca “Chumbado”… Mas, nunca com o objectivo de amesquinhar a Região! Não! O objectivo principal é que a Região abra horizontes!!!!… Porque se há uma coisa que ninguém me pode acusar em circunstância alguma, é que eu não tenha contribuído para o sucesso da minha região, ou que alguma vez tenha amesquinhado a minha região: Quando era difícil vender Bairrada, a grande maioria dos produtores passaram a dar a designação de Regional Beiras aos seus vinhos… O Mário Sérgio não tem 1 único registo de Vinho Regional Beiras. O que eu pensava na altura é o mesmo que penso agora: A nossa bandeira é a Bairrada, e é por essa que devemos lutar… Em relação a este vinho em particular, achei que esta seria uma forma de tentar “picar” a própria região, os próprios enólogos, e fazer-lhes ver que o vinho não é uma coisa que possa ser feita de uma só forma, em que as pessoas que provam estão habituadas a um estilo, e não aceitam que exista um estilo completamente diferente.

9.
(w4p) Única “pergunta numérica”: 120 000 garrafas/ano, tudo uvas provenientes de vinhas próprias, 60% espumantes… E os outros 40%?… E qual a percentagem de exportação? E quais os mercados mais importantes?
(MS) – Sim, 60% espumante, 30% tinto e 10% branco. O branco tem vindo a crescer nos últimos tempos… Neste momento, nós já exportamos cerca de 35% da nossa produção, para muitos mercados… O principal mercado é sem dúvida a Galiza (vendo mais para a Galiza que para o Norte de Portugal), e depois a Califórnia (EUA). São estes os 2 países para onde exportamos mais.

10.
(w4p) Bairrada. O que falta para se afirmar mais como Região/Marca?
(MS) – Falta muito trabalho ainda. A Bairrada durante anos, teve algo de único no País: Mais de 60% do negócio do vinho era realizado na região da Bairrada. Por exemplo, no Dão, a maior parte do vinho era comercializado por empresas da Bairrada. Isso tem um aspecto muito positivo para nós, que é o conhecimento, o Know how, do negócio do vinho… Por outro lado, pode ter um defeito: E teve. Na minha opinião, teve um defeito: É que as pessoas não se focalizaram naquilo que era da região! Os motores, as empresas que decidiam, faziam-no de um ponto de vista comercial. Não tenho nada contra. Muito pelo contrário! Mas, a região tem de ser liderada por quem está na região! Com dizem os jovens de Champagne: “ Le Champagne a qui est de Champagne”. E acho que isso é fundamental, porque tem de haver alguma teimosia, ter alguma visão estratégica da região, não fazer aquilo que fizémos durante anos: dizer mal daquilo que é nosso (se dissermos mal é muito mais difícil vender!). Nós devemos dizer as virtudes da Baga… É claro que para a Família podemos dizer os defeitos, mas para fora devemos salientar mais as virtudes que os defeitos! Até porque todas as castas têm virtudes e defeitos. E devemos salientar ao máximo as virtudes. Se conjuntamente nós conseguirmos fazer isso, podemos ter futuro. Nós, nos Baga Friends acho que démos um contributo enorme para a região… E nós começámos há 5-6 anos, quando se estava a arrancar Baga para se plantar Syrah, Merlot… E no espaço de 3 ou 4 anos até já existe um espumante Baga Bairrada!… Terão sido só os Baga Friends os únicos responsáveis por isso? Com certeza que não, mas deram uma ajuda absolutamente extraordinária. Factos são factos. História é História. As empresas estavam a abandonar a Baga, e 2-3 anos depois de surgirem os Baga Friends, a Baga passou a estar na moda! E era esse o nosso objectivo! O nosso objectivo é que a região cresça! E se a região crescer, todos nós cresceremos. E se houverem mais projectos, e mais pessoas com este tipo de visão, é muito mais fácil daqui a algum tempo a Bairrada estar na ribalta, como uma das grandes regiões de vinhos do mundo. Não tenho nenhuma dúvida sobre isso!… Borgonha há 60 anos atrás, era como a Bairrada: Ninguém a queria! Toda a gente falava em Bordéus, e em outras regiões de França… E hoje a Borgonha é um ícone mundial dos vinhos!…

11.
(w4p) Qual foi o melhor vinho que fez? Ou aquele que gostou mais de fazer?
(MS) – É muito difícil responder a essa questão, porque há vinhos que nos surpreendem pela positiva… Estou-me a lembrar por exemplo do vinho branco Garrafeira 2012, que é um ano que ficou no meio de 2 anos (2011 e 2013) que foram globalmente melhores… Mas o 2012 é um dos meus grandes vinhos! Mas continuarei a dizer que o Pai Abel 2011 tinto, o Garrafeira 2001 tinto, e Garrafeira 2001 branco, são os vinhos que mais gosto! Não sei se são os melhores vinhos da Quinta das Bágeiras, mas são os que mais gosto. Além disso, começo a gostar cada vez mais (não sei se é pela idade, ou se é por estar a apostar nestes vinhos) daqueles vinhos que comecei a beber, quando era miúdo, aqueles que o meu avô me dava, mais elegantes… E acho que o Avô Fausto 2013, que talvez as pessoas estejam à espera que tenha muita fruta, muita cor, muita complexidade… E na verdade, não tem nada disso… Tem é muita frescura, e taninos muito suaves… E é, neste momento, um dos vinhos que me dá mais gozo beber. Não sei se vou conseguir repetir um vinho tão identificativo como este 2013, daquilo que eu quero fazer como Avô Fausto. Este 2013 é rigorosamente aquilo que eu gostaria de voltar e continuar a fazer no tinto Avô Fausto.

12.
(w4p) O Futuro? Quais os objectivos? O que tem em mente? Já fez o seu melhor vinho?
(MS) – Todos nós queremos fazer o nosso melhor vinho de sempre! Só que às vezes não conseguimos… Mas o objectivo é sempre esse!… O futuro é, dentro dos possíveis, não crescer muito mais… O perfl de vinho que nós temos, se o crescimento for muito grande, pode ser desvirtuado… Porque fazer vinho em lagar é muito bonito, mas, fazer 200 ou 300 mil litros de vinho em lagar, é quase como ter a minha aldeia cheia de lagares… E portanto, é muito difícil… Por isso, para manter este estilo de vinho, o nosso crescimento tem um limite… Mas tudo o que eu possa comprar na Bairrada, que eu sei que existe, de vinhas com excepcional aptidão para Baga, esse será o futuro da Quinta das Bágeiras…
Quanto ao futuro da Bairrada, o futuro será risonho com certeza absoluta. Esse futuro começou agora, está a andar muito mais rápido do que aquilo que eu imaginava, e se nós não cometermos asneiras e excessos de confiança (por vezes em Portugal vai-se com muita facilidade do 8 pra o 80, e isso requer tempo, maturação…) que deitem tudo a perder, será isso que vai acontecer… Já antes existiam grandes vinhos, mas agora o que se está a fazer em termos de comunicação é muito melhor… Eu tenho em minha casa, mais de 600 garrafas de vinhos antigos das Caves São João… E muitos deles são vinhos absolutamente extraordinários… Portanto, já se sabia (muito bem) fazer vinho na década de 60! E hoje nós provamos esses vinhos, e sabemos que são grandes vinhos… resistiram ao tempo… Portanto, há muito que se fazem grandes vinhos na Bairrada… O que aconteceu foi que houve um período em que não soubemos comunicar bem… Além disso, o gosto do consumidor por vezes também muda , e isso é cíclico… Agora, que a Bairrada, pelo facto dos seus vinhos não estarem na moda, mude totalmente o seu rumo, isso é que não pode acontecer… Não faz sentido… Até porque fazer vinho não é a mesma coisa que plantar batatas: eu hoje planto branca e para o ano planto vermelha… Não, a vinha planto-a hoje, e daqui a 10 anos começo a ter resultados… Por tudo isto, é obrigatório que haja uma visão estratégica da própria região…

(w4p) E pronto! Muito obrigado!
(MS) – Então? Já podemos ir almoçar? Eu avisei que falo muito…

E de facto, já estamos a salivar pelo leitão do Mugasa…

W4P (JUN 2018)